A carruagem estava pronta, a foice afiada e o manto dobrado a preceito.
Todos os dias a Morte se preparava para levar o velho Cristóvão para junto dos seus contemporâneos há muito idos. Todavia, a carta teimava em não chegar, e o homem recusava-se a deixar o mundo dos vivos enquanto esta situação não se resolvesse.
“Mestre Cristóvão, a situação está a passar de todos os limites possíveis e imaginários.” – disse-lhe finalmente a Morte em mais uma tarde que devia ser funesta mas que exalava um primaveril perfume a lilases e sabão da roupa.
“Eu sei. Mais uma vez só posso dizer que estou aborrecido e envergonhadíssimo.” – suspirou Cristóvão enquanto servia uma chávena de chá à sua sombria companhia.
Exasperada, a Morte coçou o nariz, ou pelo menos o sítio onde as pessoas normais costumavam ter nariz – “Já lhe disseram alguma coisa dos correios?” – perguntou, tentando conter a frustração.
“Disseram, disseram. Mas foi só para avisar que ainda não sabiam de nada. E que com as greves todas do mês passado era muito provável que ainda demorasse mais algum tempo.”
“Isso é um ultraje!”
“Foi o que eu lhes disse. Cheguei até a perguntar-lhes se tinham a noção que estavam a brincar com a morte… mas nada. Três colheres de açúcar como sempre?”
A Morte assentiu num suspiro, meio envergonhada por gostar das coisas sempre demasiado doces.
Cristóvão pousou o bule e passou os olhos pela sua modesta casa, onde a única habitação servia simultaneamente de cozinha, quarto e sala de estar.
“Como deve perceber também não é fácil para mim ter tudo preparado e nunca saber a que dia vou partir.” – queixou-se, apontando para a roupa dobrada dentro da mala feita sobre a pequena cama.
“Mas eu tenho guerras para começar e calamidades para servir. E se…” – entusiasmada a Morte levantou-se, quase entornando a chávena - “…e se lhe mandasse entregar a carta no outro mundo?”
Cristóvão torceu o nariz. “Não sei. Com todo o respeito nunca ouvi falar ninguém que a tivesse recebido e regularizado a situação depois de morto.”
De rompante e com os nervos em franja, a Morte caminhou uma vez mais em direcção à porta - “Muito bem. Mais um dia será. Mas vou levar isto às chefias superiores. É impossível o IRS exigir tanto das pessoas.”
Cristovão rematou - “Só há duas coisas certas na vida…”
“Sim, sim… os impostos e a morte, mas parece-me que estes continuam a ganhar vantagem a cada ano que passa” – interrompeu a funesta senhora, batendo com a porta atrás de si.
E nessa noite sentiu-se que as guerras continuariam de folga e as calamidades por acontecer, à medida que um certo técnico tributário recebeu instruções do seu médico para permanecer de baixa por mais quinze dias.
© ND/2006
10 novembro 2006
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1 comentário:
Excelente história. Parabéns pela escrita.
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